CAMINHADA LUNAR, 2019
Dia vinte de julho completou cinquenta anos que o homem (supostamente) pisou na Lua. Neste dia fiz uma ação nu, no Centro de São Paulo, em que emulo o gesto de caminhar em baixa gravidade, como se na Lua estivesse. Diferente de trabalhos anteriores em que o gesto não remetia a algo, não representava, aqui ocorre desta forma, por dois motivos; primeiro pela dimensão poética de uma marca de cinquenta anos de algo que marcou a humanidade, e segundo, por uma questão de linguagem, fazer uma ação do corpo contida, lenta, em contraposição à provocação da aceleração dos transeuntes. Ir à Lua em meio ao caos. Vale lembrar que a face da Lua, que vemos, e que Apolo XI pousou chama-se Mar da tranquilidade (Mare Tranquillitatis). A performance é um desejo de se experienciar este mar.
Fotos:
@jackhasacamera Pedro Amorim
@rodrigoerib Rodrigo Erib
Vídeos:
@ronaldogrossman
@andresheikarte
Daniel Lima
Pintura corporal:
@maitbueno
Corpos indóceis
No pavor – megalomania às avessas – nos tornamos o centro de um turbilhão universal,
enquanto os astros fazem piruetas à nossa volta.
Cioran
Silogismos da amargura
Desde as primeiras incursões artísticas de Chico Fernandes, os astros parecem dar piruetas discretas à sua volta. Entre o corpo terrestre e o corpo de carne, um equilíbrio estranho e precário. Apenas um ponto de contato os mantém unidos. Em outras fotografias, nem isso. O homem em pleno vôo ou queda – como saber? - anuncia que os corpos se desprenderam. O desastre iminente, o inevitável desligamento, fica, todavia, suspenso na fotografia: “ainda não!”. E somos por momentos serenados por aquele corte do tempo, naquele instante saqueado de seu escoar. A dispersão e o colapso foram, por agora, adiados.
Custávamos então a perceber o artifício: era a inversão da fotografia que provocava aquele jogo de escalas que sutilmente transtornava a ordem natural do universo. Algumas vezes, o infinitamente pequeno, o homem, ousava sustentar ou escalar o infinitamente grande, o orbe sobre o qual caminha. Em outras, ele é apenas um ínfimo grão quase (e esse “quase” resguarda um infinito) sem sustentação. Não é um Eu aterrorizado o centro de um turbilhão universal: corpo, espaço e tempo orbitam em torno desse ponto de contato – gravidade extenuada - colocando às avessas o que supúnhamos em consonância.
Nesta exposição, corpo, tempo e espaço são ainda o foco das investidas do artista. Mas os astros fazem piruetas mais assombrosas, sonham com espaços e tempos além de nossa irrisória existência neste mundo. O artista amplia suas interrogações e mídias. Não apenas a fotografia, mas os vídeos e a ação performática. Os limites também são pressionados: o corpo ou está confinado ou extenuado - enfrentando vigilâncias e controles - ou algo é expandido: não apenas a escala invertida, mas os projetos ampliando tempos e espaços cósmicos. “Corpos indóceis”, poderíamos assim nomear os trabalhos no metrô e as ações como essa que o artista realizará na abertura, colando-se na parede por um capacete e um sapato. Ali permanecerá, debatendo-se em sua docilidade vigiada. O corpo em exaustão mantendo-se em contato com a superfície do mundo por uma cola.
“Corpos dóceis” é uma expressão criada por Foucault ao analisar as transformações da natureza e do funcionamento do poder que marcam a transição para a sociedade moderna. Segundo Foucault, se nas sociedades pré-modernas o poder era centralizado em um soberano que exercia controle sobre a população pela violência, nas sociedades modernas o poder emerge centrado na administração da vida. O biopoder reduz agentes sociais a corpos dóceis, hábeis e úteis. Otimiza sua capacidade produtiva, tanto quanto reduz suas forças em uma política de disciplina e coerção. O corpo humano é assim submetido ao maquinário do poder. Mas o poder não é uma essência, sequer é exterior: é um campo de forças, uma rede de dispositivos de controle, de relações e saberes que investem sobre o corpo e a vontade e produzem formas de subjetividade. A vigilância é cada vez mais internalizada e introduz um estado de permanente consciência e visibilidade. Se a disciplina era praticada por técnicas de confinamento – como prisões, hospitais, escolas, fábricas – aos poucos foram transformadas em técnicas de controle contínuo e comunicação instantânea. São “máquinas cibernéticas” de uma sociedade não mais da “disciplina”, como definira Foucault, mas “de controle” como afirmou
Deleuze.
Nos Subways, série de vídeo e fotografias, Chico Fernandes dribla a vigilância do metrô realizando pequenos atos interditos: atravessa os trilhos, confina-se entre vagões, libera o gás do extintor de incêndios. Apropria-se das máquinas de controle e de suas imagens para convertê-las em arte. Se em Subways são câmeras de vigilância, em Projeto Lua e Ampulheta de 100 anos, são o satélite e a Internet, o olho difuso em circulação
permanente, o olho absoluto e centralizado. Se, em Subways, o corpo de carne debate-se no interior do corpo terrestre, Projeto Lua é o salto além de qualquer confinamento, é a pirueta cósmica. São os corpos celestes que se exibem indóceis. Uma ampulheta em que vemos areia escorrer em tempo real é instalada no espaço virtual da Internet. Cem anos passará, sem que sobrevivamos ao maquinário. Sequer sabemos se o maquinário sobreviverá ou se alguém, algum dia, talvez daqui a 99 anos, acessará o site sem solo, se ele estará operante ou desaparecerá no fluxo volátil da virtualidade.
Projeto Lua, realizado em co-autoria com seu pai Silvio Fernandes, arrisca-se de modo mais contundente. O projeto propõe instalar um espelho de 1km, no espaço reservado às estrelas e aos satélites, durante a lua cheia. A luz do sol, ao incidir sobre o espelho na lua, seria desviada e refletida sobre a Terra, convertendo noite em dia. Projeto Lua, ainda que permaneça inexeqüível, existe em sua enunciação poética. Realiza uma curiosa reversão: reverte a sombra que paira no título da exposição: that’s okay, we’re afraid. Transforma o colapso anunciado em alegria temerária; o medo em maravilhamento; o confinamento dos corpos em piruetas indóceis; a vigilância e o controle, em arte.
Marisa Flórido Cesar
Março de 2008